Colóquios > Colóquio Internacional Arquivos de Psicanálise > Itens > Textos > A biografia de Freud por um latino-americano

Emílio Rodrigué 

Confesso que sempre tive o sonho secreto de escrever uma biografia de Freud. O Professor foi a figura mais importante de minha vida pessoal e pública. Foi o homem das mil caras, sempre perdido e re-encontrado em cada leitura. Bem lido, mal lido. Lido abrindo-me como fêmea com todo o engulho, desquartejando Freud, em busca do evanescente ovo de ouro. Toda leitura funda é criminosa. As leituras apaixonadas são sujaa, pingadas de sêmem derramado.

Nas entrevistas que dei, eu disse que escrever essa biografia me tomou seis anos. Na realidade, me tomou uma vida.

Comecei a escrever Sigmund Freud – O século da psicanálise em 1989, entrando nos seis anos mais ricos e febris da minha vida. Dias estudando Freud e noites sonhando com ele.

Na corte da psicanálise desfilaram figuras renomadas: o formidável Jones, com suas incontáveis dicas oficiais; os arquivistas Ellenberger e Sullivan; o sombrio Max Schur, biógrafo da morte de Freud; Anzieu, o Magnífico caçador de sonhos; o poético Rieff; o malvado Masson, a diva Roudinesco.1

Eu precisei da obras deles para abrir o coração de Freud. Mas também é certo que, por vários fatores e múltiplas razões, eu reunia condições únicas.

Primeiro por um motivo histórico. Eu fazia minha formação em Londres quando Jones lançou sua biografia de Freud. Sou um analista da quarta geração. Abraham foi vou vovô. Presenciei o velho Jones polemizar com Bion e Melanie Klein brigar com Anna Freud. Participei dos seminários de Balint, Rickman e Glover. Mais tarde estabeleci correspondência com Winnicott. Do outro lado do Atlântico, na costa da ego-psychology, trabalhei três anos com Erik Erikson e David Rappaport. Fui discípulo de Pichon Rivière, rival de Arminda Aberastury e amigo de Marie Langer. Sou psicanalista itinerante, vagabundo e nômade.

Ao histórico devo acrescentar o fator geopolítico. Sou um analista latino-americano com forte tradição no freudismo. Em nossos melhores momentos, somos antropófagos culturais e não imitadores, já que devoramos nossos heróis idealizados para sugar o precioso tutano de seu saber. Outras vezes somos putas complacentes com todos os falos for export. Somos humildes e soberbamentes acomplexados. Nossa procura bibliográfica é ampla, porisso diante de outros autores estrangeiros, faço questão de inspirar-me em autores sul-americanos: Pichon-Rivière, Daniel Gil, Ulhoa, Otavio Souza, Birman e Renato Mezan. Os biógrafos são chauvinistas de coração. No índice remissivo de Peter Gay, por exemplo, não tem lugar para Lacan, tampouco para Foucault, Laplanche, Derrida e Cia, o que é grave. Mais grave ainda, Reich não tem entrada. Os franceses, por tradição, ignoram a literatura anglo-saxonica e vide-versa. 

Sobre isso, tenho uma pérola: Em 1995, para o lançamento do meu Freud, organizei um encontro onde pensava convidar a kleiniana Hanna Segal. Para dito fim, fui a Londres. Falei com ela de meu livro e lhe disse que faria um lançamente e que queria contar com ela. Disse-lhe que Elisabeth Roudinesco, era uma das convidadas. 

Quem ? Perguntou com indiferença 

– Elisabeth Roudinesco. 

– Ah, a filha do dramaturgo? 

Ou seja, estava pensando na filha de Ionesco. O assunto não é só que não sabia quem era a Roudinesco, senão que fazia questão de não saber, numa espécie de refinado snobismo de ignorância.

Nós, terceiro-mundistas, nos sentimos mal quando um nome nos escapa. Um terceiro-mundista na terceira idade, pior ainda.

Ao histórico e geopolítico, acrescento um valor polivalente. Da minha atalaia tenho uma visão panorâmica e benevolentemente maligna do movimento psicanalítico, primeiro como membro da IPA, depois de Plataforma e finalmente como franco-atirador desde Salvador, Bahia. Como disse Natalie Zaltzman, a pulsão anarquista me acompanha.

A psicanálise nasce numa noite, num sonho, o sonho da injeção de Irma, sonhado em 18 de julho de 1895, em Bellevue, perto de Viena. Mas existe uma pré-história quando Freud ainda não era freudiano. Houve encontros. O encontro com Brücke, o homem dos olhos de aço, fundador do positivismo radical, junto com Helmholz e com Dubois Raymond. Eles representam a soberba, conservadora Escola de Helnholz, madura no topo da fama, prestes a ser superada.

Mas comecemos com as tentações. Em fevereiro de 1873, ao 17 anos, Freud retorna a Freiberg, sua cidade natal. Alí conhece Gisela Fluss e se enamora perdidamente da moça. Freud escreve a seu amigo Silverstein: “Em seus olhos brilha uma luz espiritual, uma luz interior. A beleza de Gisela é uma beleza selvagem, eu diria quase uma beleza traciana, tem a pele bronzeada, nariz aquilinio e lábios firmes, seu rosto tem uma beleza olímpica”. Gisela tinha 13 anos. Sigmund, turante um dantesc fim-de-semana, esteve disposto a abandonar seu sonho fundamental e ficar em Freiberg junto dela. Essa foi a Primeira tentação de Sigmund Freud.

A segunda acontece dois anos mais tarde, quando viaja a Manchester para conhecer a próspera, ainda que provavelmente mafiosa família de seus meio irmãos Emmanuel e Philipp (Há uma antiga história de rublos falsos, que terminou na prisão de Joseph Freud, tio ovelha preta da família]. Foi uma maravilhosa estadia, matizada por um complô familiar para que abandonasse os estudos e ficasse em Manchester como micro-empresário textil. No citado complô a isca era sua sobrinha Pauline. O plano não prosperou porque Pauline não era Gisela.

A terceira tentação foi o episódio da cocaína. Freud tinha 28 anos. Veja a seguinte carta de Freud à sua noiva Marha:

xxxxxAi de ti, minha princesa. Quando chegar [na estação] vou te beijar até que ruborizes e te alimentar até que te tornes bem cheinha. E se resistes, verás quem é mais forte: uma delicada jovem que não se alimenta o suficiente ou o homem grande e selvagem que tem cocaína no corpo.

Freud teve cocaína no corpo por mais de 11 anos e só abandonou a droga na hora da morte de seu pai. Ele repartiu a droga entre seus amigos e inclusive deu à sua noiva. Jones, o primeiro a falar sobre o assunto, disse: “Em resumo, desse ponto de vista sobre o que hoje em dia sabemos sobre o assunto, Freud estava se tornando um perígo público”. Cabe notar que a cocaína recém entrava na farmacopéia e nem se pensava em considerá-la o terceiro flagelo da humanidade.

Droga mágica, furor terapêutico. Mas para mim a cocaína foi um turning point em sua montagem anímica. A verdade é que Freud até 1890 era um jovem promissor, metódico, estudioso, com suas mãos verdes de misturar tintas, com um bom “olho de microscópio”. Mas na Viena do fim do século, os neurólogos promissores se vendiam por duzia. 

Sim a coca foi a terceira tentação de Freud, mas também o seu primeiro atropelo criativo, trata-se de um ponto de mutação do neurólogo calouro ao Freud histórico. Atrevo-me a dizer que os sonhos foram a via regia do inconsciente, a cocaína eletrificou as trilhas. Passo atrevido de um gênio que, por definição, tem que ser transgressor. A cocaína, junto com a auto-análise, se tornaram decisivos na saga freudiana. A cocaína, por caminhos foscos, me leva a uma digressão que considero importante: Jones, Gay, Sullivan, Reik, Clark, todos os biógrafos nos garantem que Freud chegou virgem ao seu tardio casamento, quando já somava 30 anos. Então me pergunto: Como sabem ? Será possível que um homem bonito, de ardentes olhos negros, um homem selvagem com cocaína no corpo, chegasse virgem ao matrimônio depois de cinco anos de noivado? Será possível que o pai da sexologia moderna fosse um triste e furtivo punheteiro?

Vocês decidem.

A nutrida correspondência com sua noiva, Martha Bernays, é uma caixa de mil facetas que vão desde o ridículo ao sublime. Ela registra uma paixão werteriana, que faz da correspondência a peito aberto um tesouro epistolar inigualável.

Logo Joseph Breuer entra em cena.

Numa noite candente de verão de 1883, Freud escreve a Marta:

xxxxxHoje foi o dia mais quente de todo o verão e eu estava exausto. Precisava levantar meu ânimo e, portanto, fui à casa de Breuer. A primeira coisa que ele fez foi empurrar-me numa banheira, de onde saí rejuvenescido.

Parece que a abastada família Breuer tinha uma grande banheira, o que era o equivalente de um home theater em 1883. Logo, continua Freud, jantamos no piso superior em mangas de camisa. Momento antológico na alta cresta da amizade. Banho fresco, ceia tardia entre homens – frango frio, salada de batatas com maionese, um bom vinho branco – no gabinete do dono da casa, rodeados de livros, sob a fumaça azul de bons cigarros. No umbral da psicanálise, Breuer começa a falar de um estranho caso de histeria. Em 1880, enquanto Freud se aborrecia fazendo o serviço militar, Breuer tratava a uma jovem, Bertha Pappenheim, mais conhecida para nós como Anna O., a primeira paciente a ser curada pela palavra.

Breuer dedicou, durante mais de um ano, várias horas diárias a essa paciente, coisa rara, raríssima na época. Breuer era um genuíno investigador de animais. Usando seu método catártico, os sintomas foram conjurados, um depois do outro, junto com a descarga dos efeitos associados. Em seus diálogos catárticos começou o que Anna O. denominou “cura pela fala”, ou também “limpeza de chaminé”.

Esse foi o legado de Breuer.

Entre o promissor neurólogo e o Freud histórico temos Paris, o encontro com Charcot. Quando Freud chega à Gare du Nord em outubro de 1895,ele havia quase esquecido essa famosa noite da banheira, da ceia fria e de Anna O. Ainda era cem por cento neurólogo. Na Salpetriere, Freud recebeu um banho de psiquiatria francesa, alinhando-se na tradição dos grandes clínicos, Pinel, Defor e a epopéia mesmeriana. A Sapetrière era a cidade dos loucos, com uma capacidade para atender até 8000 pacientes. Como o próprio Charcot disse, tratava-se de um “Museu patológico vivo”, imenso tesouro de desviações humanas. Roudinesco pinta a cena:

xxxxxAs epilépticas contavam vívidos pesadelos, histórias de membros mutilados, de mulheres devoradas por um crustáceo com cabeça de pássaro, engendro saído das trevas da Idade média. As histéricas cuidavam das suas companheiras, possuídas pela mania especular de mimetizar os sofrimentos dos outros, empapadas, andrajosas e vociferantes, ensinando a loucura do mundo, a miséria do povo.

Em 1884, Freud convence Breuer a escrever os Estudos sobre a histeria. Este lívro das grandes histéricas limpando as chaminés do universo psiconeurótico. Anna O. abre o cortejo, seguda de Lucy R., a governanta inglesa apaixonada por seu patrão; pela aristocrática e imperativa Emmy von N., que freia o furor curandis de Freud, pela misteriosa Cäcilie e pelo incomparável caso de análise selvagem de Katharina, tratada em uma sessão, no altos Alpes. Resulta evidente que o ponto débil dos Estudos é a coexistência de duas teorias explicativas. Freud optava pela repressão e Breuer pelos “estados hipnóides”. Este livro trouse uma triste sequela, porque marca o começo do distanciamento de Freud com seu mentor. Breuer, aquele que Freud uma vez mais chamou de “mestre secreto da histeria”.

Momento para a chegada de uma figura estrelar no planetário psicanalítico: Wilhelm Fliess. Freud e otorrino Fliess durante mais de 6 anos mantiveram uma extraordinária correspondência que Lacan denominou “conversação fundamental”. Essa cartas são um tesouro.

Se conheceram em uma soirée na casa de Breuer.

Como era Fliess ?

Sartre no roteiro do filme, Freud além da alma, monta a seguinte cena:

xxxxxEles conversam perto de uma janela. Fliess não olha para Freud de frente, contemplando um edifício do outro lado da rua. Mas quando quer afirmar ou convencer, ele encara seu interloucutor, mais para fascinar do que para observar. Nesse momento o brilho de seus grandes olhos parece quase insuportável. Freud está agitado, sempre sombrio, temendo que Fliess o subjulgue.

Tudo faz pensar que eles se complementam, juntos poderiam conquistar o mundo. Freud escreve: “Se existem duas pessoas, uma delas é capaz de dizer o que é a vida, enquanto a outra é

[quase]

capaz de dizer o que é a mente… essas pessoas somos nós”.

Gêmeos magníficos e ensimesmados, o que levou Freud a dizer, para delícia de Lacan, “Tu es meu único Outro”. 

A Opera prima que Freud escreveu para Fliess foi O Projeto. Segundo Mannoni, OProjeto é o resultante do inverossímil casamento de um sapo com uma borboleta [o sapo seria a neurologia e a borboleta a metapsicologia]. Para Strachey se trata de um torso renegado; para Jones, um engendro. Não existe escrito mais polêmico. Texto genial, exaltado, minimizado, antecipando sem dúvida a matriz do grande livro dos sonhos.
O Livro dos Sonhos, o Traumdeutung, é uma epopéia wagneriana. Como disse a Roudinesco: “Este livro é um romance moderno que mistura o diário íntimo, o relato psicológico e a autobiografia, lembra a procura proustiana em termos do tempo perdido, a procura joyciana em termos de arte, e a dramartugia brechtiana, em termos de técnica de distanciamento”. Eu diria que o livro mostra, de uma maneira cervantina, a sociedade vienense, com suas grandezas e misérias. Freud inaugura uma nova forma de imaginar palavras para pensar a alma.

Logo temos Dora, o triunfo de um fracasso, como o denomina Peter Gay. Este historial tem, como pano de fundo, um complicado roman a clef de dois casais da alta burguesia vienense. Temos então o pai de Dora, arquétipo do nascente mundo industrial austríaco; temos a mãe descrita como uma frígida nulidade obssessiva; a Frau K., amante do pai e Herr K. o galã-vilão da história.

Mannoni, em seu ameno Ficções freudianas faz Dora dizer, em carta dirigidaa Frau K.: “Meu pai, sifílico; minha mãe uma débil mental, você uma adúltera, e teu marido, um corno consciente. Que coleção!”

O Historial de O Pequeno Hans ao contrário, é o fracasso de um triunfo. Triunfo porque prova que um menino de 5 anos pode ser analisado; fracasso porque fez com que Anna Freud, triste Andrômeda, permanecesse fixada ao passado, freando o desenvolvimento da análise infantil. Seja como for, esta é a mais encantadora das histórias. O Pequeno Hans é um genial Edipinho. 

Depois de abrir uma nova fronteira com o Pequeno Hans, Freud entra no reino das psicoses. O caso Schreber, temáticamente, forma um par complementar com Leonardo da Vinci, o dos grandes analisandos que não conheceram o divã (o terceiro será o Presidente Wilson). Foi Jung que chamou a atenção de Freud sobre as memórias de Schreber. Para Freud, o delírio de Schreber era um bocato de cardenale. Os neologismos, sua transparente feminilidade constituíam pistas claras das operações psíquicas. Como antes com O Pequeno Hans, a questão era escutar, com ouvido livre e atento. A cosmogonia de Schreber tinha sentido e permitiu a Freud de inferir a fórmula da paranóia.

Se A interpretação dos sonhos constitui o discurso do desejo, Os Três ensaios de teoria sexual podem ser considerados o discurso da pulsão. Toda a teoria psicanalítica repousa nesses dois textos fundamentais. O ensaio sobre a sexualidade parte da idéia de que a articulação entre os sexos nunca é perfeita na medida em que a pulsão não tem destinatário fixo; o objeto sexual pode ser um sapato, Marilyn Monroe, ou uma pessoa do mesmo sexo, mas nunca uma meia laranja, como pretendia Aristófanes. Somos heterossexuais, homossexuais, bissexuais, transsexuais e também unissex, na redução masturbatória. O sujeito falante é um bicho sexuado não resolvido pela sua própria natureza.

De volta de sua primeira viagem a Roma, quando o século XX ainda engatinhava, Freudi funda o Movimento psicanalítico. 

A partir de 1905, ele se reúne todas as quartas-feiras de noite com Stekel, Kahane, Reitler e Adler. Pouco sabemos sobre Reitler e Kahane. Reitler foi o primeiro a ter pacientes; Kahane se suicidou (Stekel também, o que resulta em 2 sobre 4). Stekel foi a mão direita de Freud. Ele rememora essas quartas-feiras da seguinte maneira: “As reuniões eram fonte de inspiração. Elegíamos um tema ao acaso e todos participávamos da discussão. Existia uma perfeita orquestração entre nós. Éramos pioneiros em terras ignotas e seguíamos o nosso líder. Chispas saíam de nossas mentes e uma revelação nos aguardava cada noite”.

Stekel tinha 37 anos, Adler 32. Adler ocupou por um tempo o lugar de Fliess, dando conta da parte biológica da teoria analítica. Mas acredito que Stekel com seu trabalho sobre o simbolismo e a noção de bipolaridade, é bem mais interessante. Jones queimou sua reputação quando inventou a história de que Stekel inventava histórias.

É dificil precisar quando Stekel e Adler se separam da ortodoxia freudiana, mas a distância já era infranqueável no 1° Congresso de Salzburgo, em 1910. Aqui, em 1910, começam os tempos mais trágicos e paradoxais da história da psicanálise. Esta década, atravessada pela Primeira Guerra Mundial, se caracterizou, no quadro político-institucional, por uma feroz luta pelo poder, com mais golpes baixos que altos, que terminaram em cismas irredutíveis. Ninguém saiu limpo nessa briga onde a figura arquetípica foi, tinha que ser, Jung, o “Príncipe herdeiro”, como Freud o chamava. Freud queria um não judeu na cúpula e propôs Jung como primeiro presidente da recém fundada IPA. O grupo de Viena, ou seja, o grupo ampliado das quartas-feiras se insurgiu (insubordinou ?). Ferenczi, Abraham e Rank foram os principais discípulos que permaneceram fiéis.

Depois da queda de Jung, e como consequência desse vácuo de poder, os senhores do Anel surgiram, grupo idealizado por Jontes, inspirado nos Cavaleiros da mesa redonda, formada por Jones, Ferenczi, Abraham, Sachs, Rank e o enigmático Eitingon. Grupo secreto com Freud na cabeça, que governou a IPA, por detrás dos bastidores, até a morte de Abraham, em 1924.

Esta sociedade secreta resume bem o que se pode chamar de doença juvenil da psicanálise, um dogmatismo com fácil queda ao autoritarismo. Já Ferenczi, em 1910, na ocasião do Congresso de Nuremberg, escreve a Freud o seguinte: “Não penso que a concepção psicanalítica do mundo conduza a um igualitarismo democrático. A elite espiritual do mundo deve conservar o predomínio…”.

Esta também foi a década dos triangulos amorosos, enredos impossíveis e suicídios: temos o triângulo de Freud/Sabina Spirlein/Jung; o triângulo Freud/Andrea Salomé/Victor Tausk; o triângulo Ferenczi/Elma/Freud e o triângulo Jones/Loe Kann/Freud. Freud, imerso em todos esses embrulhos parece realmente o pai da horda primitiva. Esse velho homem selvagem com cocaína no corpo.

Década paradoxal, como já disse, porque, junto ao caos político e as surubas virtuais e não tão virtuais, houve uma prodigiosa produção certificada: os Artigos técnicos, o Leonardo, Totem e tabu, Narcisismo, os artigos Metapsicológicos e a Wandlungem I e II de Jungo, os dois trabalhos clássicos de Abraham sobre Depressão Estádios da libido e a Thalassa de Ferenczi.

Logo temos os dois historiais que tentam elucidar a neurose obsessiva, as legendárias histórias dos ratos e dos lobos, fascinante contraponto complementar. Com o primeiro caso, Ernst Lanzer, o Homem-rato, Freud descreve pela primeira vez o gozo do sintoma ao falar da expressão do paciente falando da tortura dos ratos. Pode-se dizer que Lanzer, jovem advogado de 28 anos, foi o primeiro paciente moderno, por sua sintomatologia e por ter lido Freud antes de consultá-lo. Com ele, Freud descobre o “dialeto” obsessivo. Depois da história do céu aberto do caso Dora e a transparente fobia do Little Hans, o Homem dos Ratos se apresentava com uma densa formação labiríntica, com seus paradoxos temporais e sua lógica perversa.

Se o historial de Lanzer girou em torno da tortura dos ratos, o historial de Sergte Petrov se centra no sonho dos lobos que o paciente, apavorado, teve entre 5 e 6 anos. Este sonho, na literatura analítica, só passa para o segundo lugar, depois do sonho de Irma.

Quem foi o paciente predileto de Freud, o Homem Lobo ou o Homem Rato ? Serge teve mais sorte com seu apelido.

Segundo Lacan, Freud escreveu Totem e tabu e o Narcisismo como fruto da polêmica com Jung. Acontece que a teoria do narcisismo desestabilizou o antigo dualismo pulsional. Isso acontece, sintetizando um pouco, em Mais além do princípio do prazer que inaugura a Segunda tópica. Não existe outro texto que questione tanto o problema mesmo da vida. Daí, talvez, o sabor zaratustriano do título. Em sua alta especulação, lembra o Projeto. O que está além do princípio do prazer, tem algo de demoníaco. Jung, Tausk, Groddeck e talvez Rank têm algo de demoníaco.

O caminho está pronto para falar do instinto de morte. Temos então Eros e Tanatos; Vida e Morte; Vishun e Shiva. Eros é fome ontológica, Tanatos é o guardião do templo.

A introdução do instinto de morte engendrou uma profunda divisão no campo analítico. De um lado, Melanie Klein e Lacan trabalharam teóricamente o conceito. Melanie Klein, em particular, o radicalizou, chegando quase a postular um monismo pulsional. Em contrapartida, Heinz Hartmann, o pai da psicologia do ego, preferiu concentrar-se no “conceito de pulsões que realmente encontramos na clínica psicanalítica dispensando o conjunto de hipóteses de Freud, de orientação biológica, acerca dos instintos de vida e morte”. Essa posição foi tomada pela maioria das escolas norte-americanas, de Alexander a Zilboorg, com exceção, talvez, de Rappaport.

Em 1922, Freud faz sua entrada na psicologia social. O livro A Psicologia das massas, começa com uma bomba, questinando a oposição entre o social e o individual. A psicanálise, como paradigma da psicologia individual, subverte as relações sociais fictícias. Este é o texto onde Freud mais fala sobre amor. Amor carnal, filial, fraternal, marital, amizade, inimizade, interesse estético. Mas, de todos esses amores, Freud se concentra no amor pelo líder. Ele considera que a Igreja é um grupo artificial que venera um cacique, um Deus.

Aqui podemos acompanhar Roudinesco quando diz que Deus morreu em meados do século XIX, ultimado por Feuerbahc que deu um giro antropológico, anunciando que o homem fez a Deus à sua imagem e semelhança. Sucedeu então que, com Deus morto, Marx e Freud dão um passo na frente, preenchendo o vácuo. Conquistadores, ambos lançam suas apostas, propondo uma des-alienação chamada de Revolução por um, e de Cura, pelo outro. Suas promessas estavam baseadas na apropriação pelo ser humano das leis de seu funcionamento. A chave do mundo, para Marx, estava no trabalho; para Freud, no desejo.

Mas os projetos messiânicos são dispositivos perigosos e os perigos são duplos. Pelo lado das neuroses, no caso do marxismo, o perigo estava no disciplinarismo laboral comunista, no caso da psicanálise, no narcissismo das pequenas diferença; Pelo lado das perversões o perigo está na KGB, por um lado, na IPA, pelo outro.

Sou um psicanalista selvagem! exclama Groddeck no Congresso psicanalítico de Haya em 1920. Groddeck talvez soubesse que isso era exatamente o que os analistas da platéia, cansados de guerra, procuravam não ser ou não aparentar. Anna Freud, debutante nessas lides internacionais, ficou mal impressionada. Melanie Klein ficou bem impressionada. Groddeck usava um estilo provocativo em sua campanha contra a dissociação psicossomática e costumava dizer que o corpo não é um subúrbio da alma. Groddeck tomou o termo id de Nietzsche e escreveu:

xxxxxSou da opinição de que o homem é dominado pelo id. Ele é algo maravilhoso que regula tudo que acontece. A frase “eu vivo” é apenas condicionalmente correta, ela expressa um fenômeno parcial da verdade fundamental: “O homem é vivido pelo id”.

O id arquiteta a noção de superego, tornando mais complexo o aparelho psíquico. Junto com ele aparece o ideal do ego e o ego ideal. O ego ideal é uma ilusão; o ideal de ego, uma promessa. Segundo Lacan, o superego seria uma sentença, o ideal de eogo está no plano simbólico e o ego ideal no plano imaginário. Na nova tópica tripartite, Freud toma a imagem platônica onde o ego “é como o cavaleiro que deve controlar a força superior do animal e que, além de dominar ao brioso cavalo, tem que lidar com uma nuvem de abelhas bravas (o superego). A idéia da precariedade do ego não é nova, já que em 1911 Freud escreve a Jung: “O Ego, esse … palhaço”

No mês de fevereiro de 1923, Freud detecta um caroço na boca. Felix Deutsch o examina e conclui que a lesão é cancerosa. Ponto de partida de uma série de tremendo equívocos e desacertos. Algo inexplicável. A galeria de espanto começa por uma intervenção mutiladora de Markus Hajek, que extirpa meio paladar sem necessidade. Na realidade, não é fácil de compreender a atitude dos protagonistas do drama: tanto a de Hajek, como a dos discípulos, da família e, mais que nada, do próprio Freud. Foi uma cadeia iatrogênica de 11 intervenções cirurgicais e 9 próteses. Segundo Schavelzon, oncologista de reputação mundial, Freud não tinha cancer até 1939 e sua condição era uma papilomatosis florida não cancerosa. Segundo Schalvelzon, as radiações malignaram o tumor.

No meu Freud o século da psicanálise, postulo um pacto em torno do sonho da injeção de Irma. Ele, com câncer, pagou a dívida faustiana e agora pode partir para a Segunda tópica. O câncer como ponto de mutação.

Tempos difíceis se avizinham. A morte de Abraham foi um golpe duro, seguida do afastamento de Rank e Ferenczi. Freud mutilado perde poder. Isso aparece muito claramente na chama da “batalha da análise laica”, onde Freud, depois do processo contra Theodor Reik perde a força numérica dos analistas norte-americanos, comandados por Brill. No Congresso de Bad-Hombourg, em 1925, cinco sociedades Yankees haviam se filiado e isso fez a diferença numérica. A análise estava tornando-se respeitável e os novos queriam ser qualquer coisa menos curandeiros, “leigos de animais”.

Em 1924 começa outra batalha, a “batalha da análise de crianças. Na heterodoxia do momento, Melanie Klein estava próxima de Rank. Ambos procuravam o protótipo para a angústia: Rank no trauma do nascimento, Melanie Klein na relação ambivalente do infante com o seio materno. Eles foram os primeiros a enfatizar o papel da mãe no destino da criança, para concluir que a culpa não era só um legado do Complexo de Édipo.

A posição depressiva foi a primeria inovação estrutural na obra de Melanie Klein. Posição, da mesma maneira que “complexo” para Jung, não é o mesmo que fase. Posição implica em constelação de fatores – relações de objeto, ansiedades básicas e estádios libidinais – que incidem e sobredeterminam um momento dado.

Tanto o objeto interno kleiniano como o objeto pequeno a impliam o day after de uma perda. A diferença reside em que o objeto “a” é irredutível à simbolização, em quanto o objeto interno se constitui na matriz do símbolo.

Esta foi a década das mulheres, elas passaram a ter voz cantante na cúpula analítica e começaram a questionar os limites da inveja do pênis. Des anos mais tarde, Anna Freud e Melanie Klein polarizaram a pscanálise como chefas de Escola.

Em  aparece Inibição, sintoma e angústia; livro que revela a inibição, o sintoma e a angústia do próprio Freud. Típico livro de alguém que está com pressa porque sabe que a morte está na espreita. Este livro da fim à teoria da “angústia tóxica” da primeira tópica. Agora a relação se inverte, a repressão não gera angústia, a angústia é a causa da repressão. A partir desta reformulação nasce a Psicologia do ego, apoiando-se na noção deRealangst. Anna Freud lança O Ego e os mecanismos de defesa, onde elabora os três tipos de angústia: a angústia objetiva, a pulsional e a do superego. Um ano depois, Heinz Hartmann publica sua célebre monografia sobre o coneito de ego. Curiosamente, Melanie Klein também se baseia emInibição, sintoma e angústia, trabalhando sobre a idéia básica do livro, enfatizando que a angústia se deve mais à ação da agressividade que da libido.

Em O futuro de uma ilusão, Freud arremete contra a ilusão religiosa, que considera própria da infância da humanidade. Mas, falando da ilusão das ilusões, o cético Freud possui a sua, ele banca a ilusão de que a ciência possa ser nossa grande saída. Cabe dizer que este é um livro otimista. Freud pensa que onde havia religião haverá ciência. Se O futuro de uma ilusão é um livro que acredita no Iluminismo, o Mal-estar na cultura já é pós-moderno, onde aborda o tema do trabalho para concluir que a felicidade é impossível. Só restam as possibilidades sublimatórias, mas não é fácil ser sublime. A sublimação é um luxo caro. O Mal-estar na culturatambém poderia ser denominado O livro da culpa. Freud disso: “O próximo, para o homem, é alguém que se presta para ser agredido, explorado, abusado sexualmente”. Fazer bem ao próximo é um mandamento impossível. Freud está com Hobbes em oposição a Rousseau. O homem natural é anti-social pela sua própria natureza. O homem é o logo do homem.

Enquanto Freud escrevia o Mal-estar na cultura, a sombra de Hitler se cernia sobre a Europa. O Mal-estar pode ser considerado um epitáfio premonitório dos tempor por vir. Aqui a crença do gradual progresso da humanidade chegao ao fim. O pós-modernismo nasce em 1943, nos campos de concentração de Dachau e recebe seu batismo em Hiroshima. A “aceleração histórica, torna-se “fragmentação histórica”.

O que está em jogo no Moisés de Freud é uma heresia, por um lado, e uma verdade histórica, por outro. Para um judeu, dizer que Moisés não era judeu, que era egípcio seria a maior das heresias possíveis, como afirmar que Pelé é belga. Mas, o que estava realmente em jogo, era a verdade histórica, que alguns conseram uma fantasia restropectiva, projetada no passado. Segundo este critério, fazer história é um assunto ilusório. Tema candente no mundo pós-moderno. Hoje em dia a historicidade está sendo questionada. Assunto vital na medida em que a meta do trabalho analítico é realizar a historicização simbolizante.

Houve 3 diários na vida de Freud. O primeiro diário foi escrito a quatro mãos com Martha, nos anos dourados do noivado. O segundo, escrito em 1916, foi um diário de guerra, que reflete a ansiedade de um sem novidade no front, com seus filhos nas trincheiras. O terceiro, também chamado deSegunda crônica, é mais dilatado no tempo e vai desde o dia em que Wall Street quebra, 1929, até uma semana antes do início da Segunda Guerra Mundial.

Freud depois de ler os titulares da invasão de Histler escreve em seu diário “Finnis Austriæ”. A partir desse momento começam os demorados preparativos para o exílio. Horas angustiosas, culminando com o dia em que Anna foi presa pela Gestapo. Esse foi o dia em que Freud chorou.

Ernest Jones e a Princesa Bonaparte foram figuras chaves para tirar Freud de Viena. Eles mobilizaram desde Roosevelt a Mussolini, desde a Sorbonne até a Sociedade Real Britânica. O problema era duplo, encontrar um país que acolhesse a família de Freud e conseguir que os nazistas os deixassem sair. A sorte quis que o oficial da Gestapo que se ocupava do problema, tivesse uma dívida da gratidão com Freud. Seria um “bom nazista”.

Na madrugada de 5 de junho de 1938, a família Freud, com toda a papelada em ordem tomou o Expresso Oriente rumo à fronteira com a França. Marie Bonaparte os recebe em Paris. Freud, Anna e Martha passaram o dia na bela casa da Princesa Bonaparte. Alguns analistas franceses foram convidados. Cadê Lacan ?, se pergunta Roudinesco. Nessa tarde parisiense, o mais significativo talvez foi esse encontro que não teve lugar. O fato é que Freud tinha “esnobado” o jovem Lacan, sete anos antes, quando este tinha mandado, cheio de expectativas, sua tese sobre a paranóia. Freud não se interessou pelas aventuras de Aimée. Lacan foi convidado mas não se apresentou.

No cair da noite de 1938, Freud atravessa o Canal da Mancha no Ferry. Agora, aos 82 anos, “cumpre” o antigo desejo de viver na Inglaterra. Mas o velho corpo está dando seu último hálito. O esquife lhe aguarda no rio Tâmisa. 

Foi o momento dramátifo, terno, desgarrado das despedidas. Momento do exilado que se sente livre de seu passado, de Viena e dos nazistas, mas que lamenta sua cidade perdida. Freud tem um alucinante diálogo mudo com Dalí e oferece uma gardênia a Virgínia Wolff, mas o que mais me impressionou, pelo dramático levado ao patético, foi o relato de Jones da hora de sua despedida:

xxxxxEm agosto as coisas se deterioraram rapidamente. O cheiro pútrido provinha de sua ferida. Assim, quando levaram seu cachorro chow predileto para visitá-lo, ele se encolheu no rincão mais apertado do quarto, uma experiência mortífera que revelou ao morimbundo a situação à qual havia chegado.

Cena que nos leva ao pleno umbral do insuportável. Poucos dias depois, Freud segurou na mão de seu médico e lhe disse:

xxxxxLiebe Schur seguramente recordara nossa primeira conversa. Você prometeu que não me abandonaria quando chegasse a hora, agora tudo é tortura, não tem sentido.

Schur conta que Freud “respirou aliviado, segurou a mão com mais força e disse Ich danke ihnem”.

Schur aplicou-lhe uma injeção eutanásica de morfina. Freud entrou em coma e nunca mais saiu.

O corpo foi cremado no cemitério de Goldem Green. Stefan Zweig e Jones fizeram as orações fúnebres. Suas cinzas foram colocadas numa urna italiana antiga, presente de Marie Bonaparte, que era, na realidade, uma vasilha usada para fazer vinho. 

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1 Ela, por sorte, sozinha atravessou o peso da psicanálise francesa