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Roberto Yutaka Sagawa

A História da Psicanálise em São Paulo começou com Francisco Franco da Rocha, que foi o primeiro professor catedrático de Neuropsiquiatria da Faculdade de Medicina de São Paulo e fundador do Hospital Psiquiátrico do Juquery, e com Durval Marcondes, em 1919. 

Em 1927, constituiu-se a primeira Sociedade Brasileira de Psychanalyse, em São Paulo, com uma filial no Rio de Janeiro. Esta Sociedade tornou-se inativa, a partir de 1930 e acabou extinta.

Em 1937, chegou a primeira psicanalista ao Brasil: a dra. Adelheid Koch. Iniciou-se, assim, as primeiras análises didáticas no Brasil e na América Latina. Em 1944, constituiu-se o Grupo Psicanalítico de São Paulo e, em 1951, este Grupo foi reconhecido como a primeira filial da IPA no Brasil como Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. 

Esta história já está bastante divulgada em minhas pesquisas: a minha dissertação de Mestrado, o meu livro A construção local da Psicanálise, o mais recente livro sobre Durval Marcondes e um mais um tanto de artigos publicados e em comunicações científicas.

Por uma descontinuidade

Venho dando uma ênfase até agora, à continuidade do campo psicanalítico em São Paulo, de tal maneira que o passado é uma espécie de origem do desenvolvimento que se deu até o presente. No entanto, não existe na História apenas continuidades, ao mesmo tempo, também existe descontinuidades. 

Nestes termos, eu vou me ater a uma das descontinuidades dessa história, o que significa haver uma direção da Psicanálise que foi interrompida até hoje. Freud e as primeiras gerações nunca viram a Psicanálise “encarcerada” no consultório particular e se dedicaram abertamente à Psicanálise “fora” deste. 

Também, no Brasil, as primeiras gerações de psicanalistas, como é o caso de Durval Marconcdes, tiveram essa concepção de Psicanálise ampliada. Há um grupo de psicanalistas em São Paulo, nos anos 30 a 50, que desenvolveu um trabalho de saúde mental fora do consultório particular. É o de Higiene Mental Escolar que começou com Durval Marcondes, em 1926, e caminhou lado a lado com a psicanálise de consultório particular. 

Existe soment uma higiene?

Na primeira metade deste século, a Higiene Mental não teve uma única concepção conforme, muitas vezes, eu encontrei em pesquisas acadêmicas muito tendenciosas e parciais. Ao contrário disso, eu posso arrolar, pelo menos, cinco concepções diferentes:

xxxxx1. Como concepção político-ideológica que se baseia em racismo e que, nessa proporção, defende a eugenia. Ela pregava a existência de raça superior e raça inferior.

xxxxx2. Como instrumento político usado pelo Estado: o controle da população através da propaganda e da medicalização do tratamento do alcoolismo definido como “a” questão de saúde pública, ou seja, promover uma “limpeza” moral e social. Foi o caso da política médica adotada pela ditadura do Estado Novo, durante o regime de Getúlio Vargas. 

xxxxx3. Como movimento político-partidário em que médicos psiquiatras foram eleitos com um programa abertamente conservador. Foi o caso da Liga Paulista de Higiene Mental, que se aliou a um partido político conservador, ambos abertamente pró-nazistas, durante o Estado Novo.

xxxxx4. A soma das 3 alternativas anteriores foi o resultante do que aconteceu com o caso típico de Antonio Carlos Pacheco e Silva, o arqui-inimigo da Psicanálise e o chefe todo poderoso e onipresente da Psiquiatria oficial de São Paulo.  

xxxxx5. Uma concepção contra todas as anteriores em que a Higiene Mental é definida como campo de produção das condições propiciadoras de saúde mental e qualidade de vida. Embora não tivesse o discurso estruturado e sistemático da prevenção, foi a única concepção abertamente preventiva de Higiene Mental dessa época. Foi essa a Higiene Mental Escolar que se iniciou com Durval Marcondes em meados dos anos 20 do século passado, logo depois que ele se formou médico na Faculdade de Medicina de São Paulo. 

Por que faço questão de arrolar aqui as diferentes concepções de Higiene Mental aqui? Como disse antes, existem pesquisas sobre História dos saberes psi que tendem a colocar tudo num único saco de Higiene Mental, enquanto se ignora que, procedendo assim, gatos e lebres são misturados e confundidos uns com outros. Ao contrário disso, enfatizo que, além desses destacados, até mesmo pode existir outras concepões de Higiene Mental dessa época que eu mesmo ainda não consegui discriminar nesta minha busca de uma concepção múltipla e diversificada de Higiene Mental. 

Higiene mental escolar

Tudo começou como um trabalho isolado de Durval Marcondes que foi contratado, em 1924, como médico, para tratar da higiene mental escolar, na Secretaria de Estado de Educação de São Paulo. Em 1927, fundou o Serviço de Higiene Mental Escolar e aí começou a formar uma equipe de profissionais para atuar com ele. 

Essa higiene mental escolar tratava de lidar com os alunos que tinham deficiência mental e os que eram chamados de “criança-problema”. Só que, nessa época, esses alunos eram deixados de lado ou mesmo abandonados pelos professores, autoridades educacionais, profissionais de Saúde etc. Esse novo Serviço tratava de buscar alguma solução terapêutica e permitir que tivessem condições livres de acesso à saúde e educação. 
Mais ainda, foi preciso criar novos tipos de profissionais que viessem a dar conta desta nova tarefa: a visitadora psiquiátrica e a psicologista. A visitadora psiquiátrica era um misto de assistente social e psicóloga. Ela se dedicava a fazer um trabalho de investigação da família dos alunos em seus domicílios. Para tanto, freqüentava a casa, entrevistava os familiares e fazia observação e avaliação das condições de vida familiar, tendo em vista o diagnóstico familiar e social. 

A psicologista fazia entrevistas e questionários com a criança, aplicava testes psicológicos para avaliar o quociente intelectual, fazia avaliação da personalidade, inclusive, aplicando alguns testes de personalidade e também avaliava a adequação da criança à classe em que estava matriculada.
A visitadora psiquiátrica e a psicologista eram treinadas ou formadas pelo Curso de Higiene Mental, um curso de especialização, desenvolvido no Instituto de Higiene que deu origem à atual Faculdade de Saúde Pública da USP. 

Em 1938, foi criada, oficialmente, a Seção de Higiene Mental Escolar como uma parte constituinte do Serviço de Saúde do Escolar. Com isso organizou-se uma experiência pioneira no Brasil: a Clínica de Orientação Infantil.

Tratou-se de uma equipe multidisciplinar que abrangia: um médico internista, uma psicologista, uma visitadora psiquiátrica, um médico psiquiatra. A novidade desta Clínica é que se procedia a um “estudo múltiplo” de um caso clínico, em questão. A mesma criança era atendida pelos diferentes profissionais e, depois, discutia-se o caso em equipe, buscando integrar as diferentes abordagens do mesmo caso clínico. Constituiu-se, ao que eu saiba, pela primeira vez, em São Paulo, uma equipe multidisciplinar de Higiene Mental para tratar de casos clínicos. 

Em meados dos anos 40, a Clínica de Orientação Infantil contava com uma parte da equipe que passo a enumerar. Como visitadoras psiquiátricas: Diná Mascarenhas do Amaral, Ligia Alcântara do Amaral, Oraíde de Toledo Piza e Virgínia Bicudo. Como psicologistas, constam: Margarida L. Vieira Cunha, Maria José de Morais Barros, Maria de Lourdes Verderese, Maria Rita Garcez Lobo. Com o passar do tempo, esta equipe chegou a contar com: 71 profissionais especialistas em várias áreas.  

O mais interessante é que esta Higiene Mental Escolar introduziu algumas inovações importantes:

a) a criação de classes especiais para alunos portadores de deficiência. Naquela época, foi um atrevimento dedicar uma atenção especial a estes alunos que eram relegados ao esquecimento e ao abandono. Foi o pioneiro da escola inclusiva. É óbvio que a existência de classes especiais, hoje, é objeto de severa crítica, mas, naquela época, foi um começo ousado de reconhecer o direito de acesso à educação destes alunos. 

b) a inserção do aluno no seu contexto familiar e social. A equipe de Higiene Mental Escolar partiu da necessidade de conhecer as condições de vida do aluno também fora da escola, a fim de viessem a ser garantidas as condições de educação e saúde mental. Mais ainda, esse enfoque implicava que uma infância com condições propiciadoras de educação e saúde mental poderia vir a ser uma base de construção do adulto. 

Higiene mental e psicanálise

Trata-se de uma higiene mental baseada na Psicanálise, o que opõe totalmente às demais concepções de higiene mental hegemônica nesta época. Vou fazer a citação de um artigo de Virgínia Bicudo publicado na coletânea publicada pela equipe multidisciplinar da Clínica de Orientação Infantil.

xxxxx“A psicanálise, por sua vez, demonstra que a personalidade resulta de um compromisso entre as necessidades biológicas e psíquicas do indivíduo e as exigências sociais. Se por um lado a sociedade impõe padrões de conduta aos indivíduos, apresentando-lhes maneiras ‘certas’ de agir, pensar e sentir e lhes determina uma posição e um papel dentro do grupo social, por outro lado os indivíduos possuem necessidades vitais a serem satisfeitas. Nos distúrbios desses processos de ajustamento entre o indivíduo e a sociedade, encontram-se as condições etiológicas dos problemas de conduta”. (Bicudo, 1946: 80)

Observe-se que o interesse não é o de estigmatizar uma “criança-problema” induzindo-a, por exemplo, ao fracasso social e escolar. Também não é o de separar e classificar os sintomas manifestos. Ao invés disso, são as condições de origem ou etiologia dos problemas, conflitos e conciliações entre indivíduo e sociedade. Nesta forma, um enfoque psico-social é aliado ao enfoque psicanalítico. 

Um pouco mais adiante no mesmo artigo citado, Virgínia Bicudo é ainda mais explícita na formulação de sua abordagem que, na sua época, se constitui em uma novidade científica e profissional:

xxxxx“(…) a atitude científica para abordar os problemas da personalidade com fins profiláticos depende da extensão do conhecimento sobre as condições etiológicas, assim como da possibilidade de atuação sobre elas.”(Bicudo, 1946: 81)

Essa concepção etiológica e preventiva de Higiene Mental baseada na Psicanálise contrapõe-se em duas frentes: 1) ao saber psiquiátrico hegemônico dessa época; 2) às concepções de senso comum dos pais e professores quando se baseiam mais na moral religiosa cristã hegemônica do que no conhecimento científico nascente. 

xxxxx“Em geral no conceito dos pais e dos professores, a “criança-problema” é “má” ou deliberadamente “mal educada”; “anormal” quando persiste sem aproveitamento escolar e “degenerada” se apresenta problemas sexuais, correspondendo a tais preconceitos os castigos físicos e morais como únicos meios corretivos.” (Bicudo, 1946: 82)

Como se vê, a Psicanálise é um saber/fazer que teve estas duas frentes de oposição ou de resistência declarada às suas propostas de intervenção etiológica ou preventiva: de um lado, o cientificismo positivista e autoritário; de outro lado, o moralismo maniqueísta e simplista que combate o efeito, mas nunca quer saber da causa correspondente.

A quem interessa enquadrar esta Psicanálise nascente em uma posição de conservadora? Reacionária? Adaptacionista? A quem interessa impor à Psicanálise tais caricaturas políticas e científicas que contrariam totalmente a sua tomada de posição etiológica e preventivista? 

Conclusão parcial

Quem faz e pratica a pesquisa sistemática em História da Psicanálise não pretende fazer uma pesquisa apenas do passado. Ela deve ser feita rumo ao presente e, quem sabe, ao futuro. 

Vou apontar a minha conclusão parcial para dois pontos que não se excluem entre si, mas precisam ser apresentados em separado:

xxxxx1. Neste caso, surgem às vezes, certas críticas “eruditas” que, simplesmente, querem fazer com que se desqualifique o que já foi feito. É o caso da “crítica” da Psicanálise como uma disciplinarização do social. 

Ora, esta crítica não me parece ser capaz de ultrapassar a si mesma: é uma crítica de uma teoria estrangeira importada da França que não é capaz de analisar sua inserção no contexto brasileiro como mais um modismo intelectualista de pretensa “vanguarda” revanchista e furibunda. A crítica da disciplinarização social da Psicanálise pode até mesmo ser cabível, mas enquanto ficar apenas no modismo vanguardista, tudo isso não passa de mais uma torre de marfim do saber burocrático-acadêmico que nos leva a lugar nenhum. 

Não basta criticar e desconstruir o criticado, é preciso criticar e construir um saber alternativo ao que está sendo criticado. Senão, a gente sempre fica numa posição muito cômoda e conformista que pretende dar a parecer aos outros que é uma “vanguarda” ousada e atrevida, mas não passa de mais um cordeirinho intelectualista da metrópole francesa que também na verdade, está se lixando muito para a periferia subdesenvolvida… 

Existe elitismo e esnobismo de intelectuais “vanguardistas” que preferem levantar a sua própria voz mais alto e mais forte do que dar a voz e a vez às crianças que estão colocadas na periferia e na exclusão da educação e da saúde?

xxxxx2. Quando falei de descontinuidade na e da História da Psicanálise em São Paulo, isso não se limitou a chegar a uma crítica da crítica dos atuais “vanguardistas” do saber acadêmico-burocrático, mas abrange também fazer uma auto-crítica do movimento psicanalítico brasileiro. Qual é esta auto-crítica?

A Psicanálise ampliada das primeiras gerações no Brasil acabou soterrada e minimizada nos anos 60 e 70, quando ocorreu o boom psicanalítico em nosso contexto. Coincidindo e também sendo reforçado pelo regime político de ditadura militar no País, o “boom” da Psicanálise favoreceu a reclusão intimista e exclusivista do consultório particular. Pela primeira vez, o psicanalista brasileiro pode viver exclusivamente do consultório particular, com muito sucesso financeiro e respectiva badalação de marketing capitalista. Assim, seguindo o exemplo capenga e esdrúxulo da Universidade como uma torre de marfim, também a Psicanálise criou e se desenvolveu em uma torre de marfim própria e peculiar com base estratégica em seu consultório particular.  

Neste contexto, a proposta de Psicanálise feita e subjacente à Higiene Mental Escolar foi totalmente esquecida e deixada de lado no movimento psicanalítico brasileiro. Durval Marcondes aposentou-se em 1954 desse serviço, mas continuou ativo como professor universitário de Psicologia na USP, assim como em seu consultório particular e a Seção de Higiene Mental Escolar continuou ativa ainda por alguns anos depois desta aposentadoria. No entanto, por volta de 1962, a Seção foi extinta e nunca mais foi reaberta. No final dos anos 70, quando entrevistei Durval 

Marcondes, ele ficava esbravejando e protestando com muita veemência contra a extinção da Seção. O gravador e as minhas anotações não precisavam estar ligados em uma entrevista formal, porque Durval Marcondes queria me deixar “registrado” em seu protesto pelo valor heurístico, social e científico que ele ainda via na Seção. Ele tinha a esperança de que as novas gerações de psicanalistas pudessem ir ao encontro da chama de sua esperança em uma frente fértil da Psicanálise.  

Até hoje, depois de passado o boom psicanalítico dos anos  60 e70, a proposta de uma Psicanálise com enfoque social, preventivo e etiológico ainda permanece somente na intenção que não se concretiza de forma contínua e sustentada. Não basta fazer discursos verborrágicos bonitos e vanguardistas, recheados de intenções “sociais” e “políticas”, o que é o mais comum no meio psicanalítico e também no meio burocrático-universitário. 

Esta experiência psicosocial da Psicanálise coloca o problema bem amplo que permanece intocado e válido, ainda hoje, para nós: o que fazer de efetivo como intervenção de saber/fazer da Psicanálise no contexto social? 

Referências

BICUDO, V.L. Função da visitadora psiquiátrica na Clínica de Orientação Infantil. Métodos de diagnóstico e de tratamento psico-social. In: MARCONDES, D. Noções gerais de hygiene mental da criança. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1946.

MARCONDES,D.B.Noções gerais de hygiene mental da criança. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1946.

SAGAWA, R.Y. Cultura da Psicanálise. São Paulo: Brasiliense, 1984.

_____. Redescobrir as Psicanálises. São Paulo: Lemos, 1992.

_____. Álbum de família. São Paulo: Casa do Psicólogo, SBPSP, 1994.

_____. A construção local da Psicanálise. Marília: Interior, 1996.

_____ e  MARCONDES, Marcondes. Rio de Janeiro/Brasília: Imago/Conselho Federal de Psicologia, 2002.